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"A última vez que nos encontramos foi numa sala de espera em um hospital. Eu aguardava ser chamado para tirar um sinal em meu braço. Era um sinal vermelho e esquisito que aparecia pela segunda vez. Anos antes, em outro hospital, um médico o havia retirado, mas ele então voltara e parecia bastante intimidador.
O lugar estava cheio. Os números surgiam no monitor, nós íamos até o balcão, a atendente preenchia a ficha, depois voltávamos a sentar e esperávamos o enfermeiro gritar o nosso nome para finalmente sermos atendidos. Vez ou outra alguém gemia. Nunca me agradou fazer hora em hospital. Não gosto do cheiro e da terrível iminência de algo acontecer. A voz do médico, grave e pausada, a dizer, por exemplo, que aquilo no meu braço não era bem um sinal.
Eu olhava para a cara das pessoas na esperança de que o tempo passasse mais rápido, tentando adivinhar o que as levara até ali: dor na coluna, dengue, circulação sanguínea, bronquite ou um corte no pé. Olhava para as mulheres, sobretudo para as enfermeiras, e calculava se eram casadas ou não, quem poderia ter fodido na noite anterior ou como cada uma delas ficaria metida em uma minúscula cinta liga vermelha. Ou então como seriam seus gemidos. Coisas assim. De modo que estava distraído quando ele tocou no meu ombro. Tinha a cabeça raspada, estava mais magro, mais pálido e com olheiras. Mancava também. Anos antes, frequentara algumas festinhas em sua cobertura, uma vista magnifica para o mar e para a baía, as garotas, os gritos, os sorrisos e ele lá, bêbado, declamando um poema de Ginsberg ou de Geraldo Carneiro, contando vantagens sobre as viagens pro Rio, sobre ter fumado com Caetano ou Gil ou sobre um barco que compraria para cruzar o mundo. Agora, apenas aquilo, um sorriso amarelo e constrangido, um olhar que não se fixava muito bem.
-Que houve? – perguntei, imaginando que falaria sobre algum acidente.
-Estou fodido, meu velho – respondeu. – Eles acabaram comigo.
-Eles?
-Eles… – lentamente aproximou-se e, falando baixo como quem conta um segredo, disse – Aquele cara e aquela mulher ali no fundo, tá vendo? A médica e o enfermeiro da clínica onde estou. Aquele negão encostado na saída é o outro enfermeiro. Ficam me vigiando, acham que vou fugir. Não puderam me dopar hoje. Vim fazer uns exames.
A mulher e os dois sujeitos de fato não paravam de nos olhar.
-Que clínica é essa? – perguntei.
-Pra loucos. Mas é tudo uma invenção dos meus irmãos. Eles não querem que eu participe dos negócios e por isso me meteram lá, sacou? Disseram que tenho esquizofrenia, mas sei que não tenho. Esquizofrenia é genético. Se eu tiver, eles também têm… Mas eu vou dar um jeito de sair de lá…
-Certo.
-E você, o que tem feito?
-Eu? Estou tranquilo. Tenho uma filha.
-Puxa, que ótimo – ele falou e seus olhos se iluminaram. – Era pra eu ser pai também, mas a minha namorada na época decidiu abortar. Acabamos por isso. Chamei ela de assassina.
-Ah…
A essa altura a mulher que ele disse ser a médica da clínica e os dois enfermeiros já estavam do nosso lado. Ninguém me cumprimentou. Pareciam zangados. Talvez achassem que não era bom para ele encontrar um velho amigo, e é bem possível que tivessem razão.
-Vamos, Roberto – ela disse, segurando no cotovelo dele –, você já vai ser atendido.
E eles então seguiram pelo corredor, a médica na frente e o meu velho amigo ladeado pelos dois caras.
Nessa hora senti pena. Não apenas dele, mas também de mim. Passáramos tempo demais acreditando em letras de músicas, na mágica da vida, na grandeza de existir. Colecionamos histórias que não fazem mais sentido. O mundo mudou. Na verdade, nós é que despertamos. Não há mágica. A vida é realidade. E os vencedores não somos nós, Roberto, que miramos o vácuo. Os vencedores seguiram os conselhos dos tios e dos pais. Eles têm o sorriso completo e branco. Eles sabem de cor o cardápio do Outback e tem conta ativa no instagram.
Não demorou muito para que eu fosse chamado. O médico era um rapaz de vinte e poucos anos sorridente e agradável. Deram-me uma espécie de bata com abertura nas cotas, deitaram-me sobre uma maca, aplicaram uma anestesia em meu braço e em menos de dez minutos eu já estava livre do câncer e do fim.
E tudo ficaria para trás nessa nuvem que chamam de lembrança, não fosse uma coisa, triste e inesperada coisa, a notícia que li no jornal: um paciente de uma clínica psiquiátrica havia caído do sétimo andar. E eu então fiquei a pensar nele. Não no homem destroçado que encontrara da última vez, mas no Roberto de antes, uma espécie de Torquato Neto sem talento, mas endinheirado, a caminhar sobre uma mesa com uma garrafa de uísque na mão: um guia de cegos, perdido, sobre uma corda mais que bamba. Acho que eu gostava dele. Uma hora daquelas, sem ainda compreender porra nenhuma, talvez estivesse vagando pelo espaço, a decidir pra onde ir, porque talvez sejam muitas as direções. Talvez exista uma porção de caminhos, alguns dando no mesmo lugar. Ou talvez não exista merda nenhuma, e, como disse um inglês, a luz no fim do túnel é apenas o trem que vai te atropelar. Mas então um moleque aparece e o segura pela mão. Um moleque engraçado que segue com ele e o salva de mais uma estrada cheia de buracos. E meu amigo parece tranquilo e feliz como se tivesse entendido a coisa toda, como se não precisasse mais se preocupar. Esse moleque, na minha cabeça, é o filho que sua ex-namorada abortou."
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Alguma dor
Por Rodrigo Melo
Estive reparando em Arnon na última vez que nos encontramos. Seus dentes são irregulares, gastos no meio, na parte de cima e na de baixo. Meu tio também é assim, o sorriso levado embora pelo nervosismo dos dias, das coisas: as noites tristes e solitárias procurando refúgio nos livros, na TV, nas músicas e nas luzes da cidade, o emaranhado de prédios e de vidas, de sonhos e desilusões, tudo isso, de alguma maneira, soando bonito demais para ele. Às vezes imagino Arnon assim, amargurando, envelhecendo e entristecendo mais a cada dia, a cada dia sentindo-se mais diferente, a pontada no peito aumentando, aumentando também a munição contra o mundo, e só.
Dia desses saímos para tomar umas cervejas e conversar sobre literatura. Ele havia acabado de chegar de Sampa, seu livro e os de outros autores do mesmo selo foram lançados numa grande livraria de lá, creio que num shopping. Eu sentia que ele estava feliz, embora de alguma forma não conseguisse ficar sem ranger os dentes ou de olhar ao redor toda vez que dava um gole na cerveja.
- Entenda, você deve buscar alguma dor, algo maior... – ele dizia para mim.
Foi ele quem primeiro me indicou Breece Pancake, escritor sensacional que lançou um livro apenas e que acabou sozinho, dependurado no vão da casa, com uma corda no pescoço. Foi ele quem me falou de Nicky Adams, dos livros de Stephen Crane e Carver, Ana Cristina César. Uma biblioteca imensa num quartinho, livros e livros nas estantes.
- Quer algo para mastigar?
- Hoje estou desmonetarizado, Arnon.
- Não se preocupe, peça aí.
O lançamento do livro havia sido uma maravilha, soube que o local era bem freqüentado, pintaram inclusive alguns autores mais conhecidos, diversos leitores, teve também um coquetel. Seu romance estava sendo elogiado, seu romance prometia, seu romance tinha a orelha feita por alguém de respaldo, seu romance era bom. Arnon me contava essas coisas e bicava a cerveja, olhando ao redor, dizendo ainda que eu deveria ter ido, que eu deveria ter lançado pelo selo dos caras.
- Não era a hora.
- É, mas você bem que poderia ter mexido, como eles queriam. É natural o editor opinar.
Arnon, todas as sextas no período da tarde, ensinava literatura para crianças carentes numa escola pública do bairro. Os meninos e meninas aprendendo tudo o que ele sabia, ou pelo menos uma parte. A alma flutuava ao voltar para o apartamento, feliz por ser um pouco mais mito, um pouco maior.
- Procure analisar as pessoas, imaginar como são em casa, no trabalho, num sinal de trânsito...
Ele também tinha insônia – a madrugada dependurado na janela, olhando a vida de quem estivesse por perto, o binóculo mirando uma mesa de jantar, uma sala de TV, um banheiro. Há uma ciência para tudo, me confidenciava, até para olhar. Com um bloco de papel nas mãos, anotava tudo aquilo que lhe parecesse interessante. Eu lembrava disso enquanto mastigava a batata frita, olhando para o rosto dele, para os olhos fundos que tinha: as mãos finas como as de uma mulher. Eu gostava dele. No fundo, era um valente, a diferença eram as armas – a dor e as palavras, os sonhos que não deram certo e os que não paravam de surgir, os sonhos dos outros, os sonhos que eles nunca tiveram. De certo modo, ele era um valente por continuar acreditando, enquanto eu achava tudo um pouco desnecessário, sem no entanto me esforçar para saber se o que achava era o certo ou não. Eu tinha medo de ficar triste e de perder o sono como ele, eu tinha medo de ficar com os olhos fundos sem saber que a profundidade deles viria de qualquer jeito, eu tinha medo das janelas e das luzes da cidade que piscavam sem parar. E tinha medo também do que não lembro mais, do que desapareceu e do que se enraizou em mim.
- Vamos nos ver sábado, gostaria de discutir o conto que me enviou.
Arnon estava feliz. Pediu a conta. Chegara a hora de voltar para o seu universo particular, os livros, as janelas e os outros. Apertei a sua mão e então saí, pensando vagamente nas coisas que ele me fazia pensar, nas coisas que eu nem sabia que existiam aqui, em mim, e desconfiando apenas, enquanto caminhava, que ele provavelmente estaria parado no mesmo lugar, com os braços cruzados sobre o peito magro, o sorriso desgastado, seus olhos fundos e tristes, fixos, a me acompanhar."
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Mais:
http://elmirdad.blogspot.com.br/2014/04/pilulas-o-sangue-que-corre-nas-veias-de.html